Desde 2001, o dia 26 de setembro foi
instituído como o Dia Nacional do Deficiente Auditivo e do Surdo. Eu,
que possuo uma perda auditiva, fiquei sabendo da existência desse
dia neste ano, doze anos após a promulgação da lei. Porém, para
além de um dia para o deficiente auditivo é preciso pensar em como
são seus dias.
Quando criança o volume alto da
televisão ecoou em meus pais, dizendo que algo estava diferente.
Percorrendo por médicos e fonoaudiólogos, o diagnóstico de uma
perda auditiva. Depois do choque da notícia, a possibilidade de uso
de uma prótese auditiva que permitiria ser uma criança “normal”
e ouvir como todos os outros. Porém, não seria assim. Primeiro
porque ninguém escuta da mesma maneira por mais que o som seja o
mesmo. Segundo, os aparelhos auditivos implicariam uma série de
cuidados. Um deles diz respeito a água, já que se ele molhasse
poderia deixar de funcionar. As brincadeiras infantis de encher um
balão com água e jogar nos amigos colocavam-me duas opções: tirar
o aparelho e ter uma certa dificuldade para ouvir meus amigos ou
deixar de brincar com a água. Dia chuvoso? Cuidado redobrado! Banho?
Sempre lembrar de tirar o aparelho antes de ir para o chuveiro, e
ouvir o som da água encontrando o chão em uma intensidade menor...
O barulho do mar? Para escutá-lo, com aparelho. Entrar na água,
tirar o aparelho. Para dormir, outro drama. Tiro meus aparelhos para
descansar. Descansar? Ok, e se alguém me chamar no meio da noite e
eu não puder ajudar por não ter ouvido?
Sempre andar com pilhas no bolso, outro
hábito necessário. Até é possível prever quando a pilha acaba,
mas como qualquer ser humano, esquecemos, nos enganamos. Estar em uma
festa ou evento social e a pilha acabar, e você não ter nenhuma
para trocar? Só invocando a presença das divindades! Se perder a
possibilidade de acompanhar as conversas que ocorrem durante já é
ruim, deixar de conhecer pessoas interessantes com medo de não
escutar o que elas falarão e não querer fazer a pessoa repetir a
todo momento o que ela acabou de dizer é péssimo. E existe coisa
melhor que uma cantada sussurrada ao pé do ouvido? Chato é quando
você não escuta, e a coisa perde a espontaneidade ao pedir que a
pessoa repita. Quem convive comigo, acaba tendo que se habituar aos constantes "quê?".
Se falar ao telefone é um drama para
muitos, não poder fazer leitura labial só o aumenta. Na verdade,
irritante é ser chamado de senhora por atendentes de telemarketing
por conta da voz anasalada, já que o processo fala/escuta estão
intrinsecamente associados. E isso não separa do contexto social e
cultural que estamos inseridos! Dá vontade de gritar com a pessoa do
outro lado da linha dizendo que com todo respeito, senhora é a mãe
dele! Do mesmo modo, certas brincadeiras que acontecem desde a
infância entristecem. Se alguém não ouve
alguma coisa, “empresta teus aparelhos para o fulano”. Uma fala
situada entre a linha tênue da brincadeira que proporciona leveza ao
fato de não ouvir “como todo mundo”, ao mesmo tempo em que se
reforça esse lugar...
Se relato esses pequenos eventos
cotidianos, não é para me queixar de minha condição, mas sim de
como ela marca e produz um modo de viver que não é só meu, mas de
todas as pessoas que possuem uma perda auditiva e precisam fazer uso
de próteses. E na hora de procurar emprego, a dúvida sempre emerge:
sou deficiente ou não? Com a prótese, consigo levar uma vida
“normal”. Sem a prótese, as palavras começam a ser engolidas,
“falando para dentro”, a vontade de interagir com as pessoas
diminui... Embora haja uma política pública de inclusão que força
a efetivação da inclusão, como ela é realizada no cotidiano
escapa aos diferentes governos. Se o Estado e a sociedade civil
precisaram pensar na inclusão, agora eles precisam pensar as
diferenças. Fugindo da busca de um normal ideal, no encontro com a
realidade, vemos as diferenças. Seja nos graus de perda auditiva que
variam de 0 a 100%, seja nos modos de como cada um de nós escuta o
que chega aos nossos ouvidos. Entre 0 e 100%, existem infinitas
possibilidades numéricas, assim como são infinitas as
possibilidades de existência.
Todos somos deficientes em alguma
medida. Às vezes, ela está inscrita em nosso corpo. Se não
possuímos alguma deficiência, isso é motivo para se (pré)ocupar.
Como diria a sabedoria popular: “O pior cego é aquele que não
quer ver”. Se por vezes olha-se para alguém com uma perda auditiva
como um surdo, é preciso compreender que existem diferentes graus de
perda auditiva desde a surdez até uma perda auditiva leve. E isso
virará uma norma em nossa sociedade contemporânea, que tem abusado
dos fones de ouvido, ocasionando perdas auditivas nas mais diferentes
faixas etárias.
Se temos avançado nas políticas de
inclusão às diferentes necessidades especiais, precisamos pensar
nas diferenças existentes nas necessidades especiais que cada um de
nós precisa. É recorrente a pergunta se sei falar libras por
possuir uma perda auditiva, minha resposta é sempre não, porque sou
ouvinte. Porém, talvez eu precise aprender a me comunicar nessa
linguagem, como tenho aprendido a língua inglesa, pois posso perder
a oportunidade de conhecer pessoas bem legais e interessantes que
somente se expressam por essa via.
Possuir uma perda auditiva e fazer uso
de prótese não é ruim, é diferente. Uma vez após comer um
biscoito da sorte chinês, recebi a seguinte frase: “Os olhos
acreditam em si próprios, os ouvidos acreditam em outros”. Ser
humano é estar em relação ao outro, e quando esse outro nos coloca
em alguns lugares podemos ter os limites de nossa existência bem
restritos. Se a tecnologia tem avançado e aprimorado cada vez mais
os aparelhos auditivos, o acesso a essa tecnologia também deve ser
efetivar desde as diferentes políticas públicas. Do mesmo modo, em
nosso cotidiano ao encontrarmos alguém com uma necessidade especial,
seja ela auditiva, visual, física, é preciso perguntar à pessoa
como ela quer ser tratada. Afinal, é somente no encontro com o
deficiente que podemos transpor nossas deficiências, pensando e
sendo diferente juntamente com ele.
Para mais textos sobre a temática da
Deficiência Auditiva, a Paula Pfeifer tem um blog excelente. É o
Crônicas da Surdez, confiram clicando aqui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário