sexta-feira, 27 de novembro de 2015

quando foi que nos tornamos o que a gente era?

É do tempo que se trata. Sempre insistindo e avançando em direção à nossa morte em vida. Porque ser aprisionado em vida é morrer aos poucos. Se há algo de brilhante na morte dos jovens é o futuro que poderia ser, mas não foi, não é, não será. É nesse espaço sem fim de um fim que reside toda a beleza de uma vida que poderia ter sido. A morte de um jovem não é pior que a morte de uma pessoa velha. São de vidas que se tratam. Vidas não são mensuráveis, logo não comparáveis.

Essa vida que vai sendo, que vamos levando, qual sua graça? Efêmera, e por ela tudo passa; sobretudo pessoas e suas regras. Apesar de todo esse movimento, uma previsibilidade impossível de ser realizada no passado; mas num só depois totalmente realizado dando aquele feeling de já sabia, dejavu. O ser humano é um dos seres mais previsíveis-imprevisíveis existentes. Prevísivel por ele criar com o que, a partir do que lhe é ofertado. Imprevísivel por se tratar de criação.

A brilhosidade de Revolutionary Road (Foi apenas um sonho) é reluzente. Ela e Ele se conhecem, interessam-se um pelo outro. Os passos seguintes (namorar, casar, e ter filhos) são dados por eles. Porém, a loucura da normalidade de como nossa vida vai entrando nos padrões que lhe são im-postos é elucidada por um louco que afirma que eles não eram um casal comum. Enquanto planejavam a viagem em outra cidade, Paris, que os permitiria mudar de perspectiva alguns imprevistos vão acontecendo: ela engravida, ele passa a ser reconhecido no trabalho, o que o faz desistir da viagem a Paris. A viagem acaba não acontecendo, e os eventos vão afirmando a incomunidade daquele casal. Imprevistos acontecem, mas nosso modo de lidar com o que vai nos surpreendendo em vida também é imprevísivel? Mesmo que os eventos sejam de fato colocados no concreto no futuro, nosso padrão de lidar com as coisas está sempre presente? Embaralhando os tempos, quando foi o instante que nos tornou o que somos?

Juntamente com as cartas que são dadas, ganhamos a oportunidade de jogar. Escolher os movimentos, ainda que presos à algumas convenções. Dos encontros que aconteceram em um passado ao transcorrer do tempo com suas expectativas e cobranças, demandando que digamos a que viemos. Mas, a casa noturna não é mais a mesma; mudaram os garçons, mudaram as pessoas que a frequentavam, ficou o saudosismo daquela época em que se podia chamar de minha. O bar ponto de encontro semanal fechou com previsão de uma mudança, nunca realizada. Assim e assado, conforme manda o figurino as vidas foram se fazendo. Não é do nada que nos inventamos. Não é do nada que surgimos, embora seja para o nada que iremos. Se vasculhar os arquivos do passado nos permite acessar alguns restos que nos compõem, por que não radicalizarmos e tornarmos outros que não os que somos destinados a ser?

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

fotógrafo-cartógrafo.

sobre devir-animal e se fazer cartógrafo no encontro com o(s) acontecimento(s).
Quem não gosta de esperar não pode ser fotógrafo. Em 2004 cheguei a ilha Isabela, em Galápos, aos pés de um belíssimo vulcão chamado Alcedo. Deparei-me com uma tartaruga gigante, enorme, de no mínimo duzentos quilos, da espécie que deu nome ao arquipélago. Cada vez que me aproximava, a tartaruga se afastava. Ela não era rápida, mas eu não conseguia fotografá-la. Então refleti e pensei comigo mesmo: quando fotografo seres humanos, nunca chego de surpresa ou incógnito a uma grupo, sempre me apresento. Depois me dirijo às pessoas, explico, converso e, aos poucos, nos conhecemos. Percebi que, da mesma forma, o único meio de conseguir fotografar aquela tartaruga seria conhecendo-a; eu precisava me adaptar a ela. Então me fiz tartaruga: fiquei agachado e comecei a caminhar na mesma altura que ela, com palmas e coelhos no chão. A tartaruga parou de fugir. E quando se deteve, fiz um movimento para trás. Ela avançou na minha direção, eu recuei. Esperei um momento e depois me aproximei, um pouco, devagar. A tartaruga deu mais um passo na minha direção e , imediatamente, dei mais alguns para trás. Então ela veio até mim e se deixou observar tranquilamente. Foi quando pude começar a fotografá-la. Levei um dia inteiro para me aproximar dessa tartaruga. Um dia inteiro para fazê-la compreender que eu respeitava seu território.

Em: Salgado, Sebastião. Da minha terra à terra. Sebastião Salgado com Isabella Francq. São Paulo: Paralela, 2004.



quarta-feira, 25 de novembro de 2015

foucault.

Finalizei a leitura de Michel Foucault - Uma biografia do Didier Eribon e a intensidade das vidas que se entrecruzaram e se entrecruzam persiste em me acompanhar. Foucault psicólogo, Foucault filósofo. Foucault que encontra Kant, Freud, Hegel, Nietzsche, Bataille, Blanchot, e tantos outros pensadores. Encontra ainda em seu cotidiano pessoas como Georges Canguilhem, Gilles Deleuze, Jacques Rancière, George Dumézil, Pierre Bourdieu, entre tantos outros intelectuais franceses. Nesse cenário, que também é político, relações se fizeram e desfizeram, fazem e desfazem. 

Segundo Didier Eribon, jovem Foucault com questões sobre a vida e sobre o suicídio. Jovem Foucault que discutia vorazmente com seus colegas, xingava-os. Jovem Foucault que gostava de aplicar o Rorschach nos calouros. Professor Foucault que em suas aulas esmiuçava seus conteúdos, discutia com e através de fenomenologia, marxismo, psicanálise. Foucault que questionava-se se era analisável. Professor Foucault, que frente a irrupção de uma música pop durante sua aula de 1º de fevereiro de 1984 durante o curso A coragem da verdade, brinca: "Acho que você se enganou. Ao menos é Michael Jackson? Azar."

Seu pensamento foi se produzindo, afetou e foi se afetando na produção de um legado do qual somos herdeiros. A obviedade de um encanto com ele se esvai no encontro com outras pessoas que de sua obra pouco conseguem extrair. Talvez pelo pouco partilhamento do modo como Foucault colocava suas indagações, bem como seu fluxo de pensamento. Um pensamento em constante mutação, sofrendo as interpelações do vivido e transformando-as em vivo, num constante virar outro. Foucault se fazendo nos desvios que viver implica. Sua genialidade encontra-se não só na maneira de conduzir suas problemáticas, seu exaustivo trabalho e delicadeza com os materiais que tinhas disponíveis, mas também em algo muito raro, sua humildade. Sua produção: d'As palavras e as coisas à História da Loucura (e suas relações com o saber médico que também aparecem em O Nascimento da Clínica), passando por Vigiar e punir, passando pela biopolítica, chegando enfim e nesse fim, por sua finitude, à sexualidade e em um retorno aos gregos. Sendo estratégico, nos convidando a sermos estratégicos.

Um intenso admirador do que fizeste enquanto obra enquanto viveu e que segue existindo, cogito a pensar que se um dia tivéssemos nos encontrado, sua energia, sua determinação, sua coragem de verdade me amedrontariam, por afirmar um modo de ser e de combater com outros sujeitos, e assujeitados nessa trama de jogos de verdades a que nos encontramos e sustentamos. Ao mesmo tempo, tão intensas eram suas relações, em que a amizade figurava-se como uma possibilidade primeira, com sua estima e apreço pelos queridos.

Seu constante viajar, a trabalho, por trabalho, por questões de viver. Estiveste no Brasil tantas vezes, recusou-se a voltar aqui frente a situação em que nos encontrávamos, uma ditadura militar, que tentou proibí-lo de falar o que ele tinha a dizer. Suas idas aos Estados Unidos, e às possibilidades de existência que encontraste lá, contrastam com seu ingresso no Collége de France e sua intensa demanda de trabalho. É num auge que sua morte se faz, e demonstra-se abrupta. O que uma biografia deixou ecoando é a rapidez com que isso ocorreu. Qual o destino dos livros que tinhas programado e que seriam lançados posteriormente? A interrupção do fluxo do pensar, marcada pela finitude do corpo, remete-nos a morte em vida, quando nos é tirada a possibilidade de pensar. Seu pensamento, uma boa herança nos permite fazer algo com ela. Reinventarmos com aquilo que recebemos.