quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Você quer escutar sobre as diferentes perdas auditivas?

Desde 2001, o dia 26 de setembro foi instituído como o Dia Nacional do Deficiente Auditivo e do Surdo. Eu, que possuo uma perda auditiva, fiquei sabendo da existência desse dia neste ano, doze anos após a promulgação da lei. Porém, para além de um dia para o deficiente auditivo é preciso pensar em como são seus dias.

Quando criança o volume alto da televisão ecoou em meus pais, dizendo que algo estava diferente. Percorrendo por médicos e fonoaudiólogos, o diagnóstico de uma perda auditiva. Depois do choque da notícia, a possibilidade de uso de uma prótese auditiva que permitiria ser uma criança “normal” e ouvir como todos os outros. Porém, não seria assim. Primeiro porque ninguém escuta da mesma maneira por mais que o som seja o mesmo. Segundo, os aparelhos auditivos implicariam uma série de cuidados. Um deles diz respeito a água, já que se ele molhasse poderia deixar de funcionar. As brincadeiras infantis de encher um balão com água e jogar nos amigos colocavam-me duas opções: tirar o aparelho e ter uma certa dificuldade para ouvir meus amigos ou deixar de brincar com a água. Dia chuvoso? Cuidado redobrado! Banho? Sempre lembrar de tirar o aparelho antes de ir para o chuveiro, e ouvir o som da água encontrando o chão em uma intensidade menor... O barulho do mar? Para escutá-lo, com aparelho. Entrar na água, tirar o aparelho. Para dormir, outro drama. Tiro meus aparelhos para descansar. Descansar? Ok, e se alguém me chamar no meio da noite e eu não puder ajudar por não ter ouvido?

Sempre andar com pilhas no bolso, outro hábito necessário. Até é possível prever quando a pilha acaba, mas como qualquer ser humano, esquecemos, nos enganamos. Estar em uma festa ou evento social e a pilha acabar, e você não ter nenhuma para trocar? Só invocando a presença das divindades! Se perder a possibilidade de acompanhar as conversas que ocorrem durante já é ruim, deixar de conhecer pessoas interessantes com medo de não escutar o que elas falarão e não querer fazer a pessoa repetir a todo momento o que ela acabou de dizer é péssimo. E existe coisa melhor que uma cantada sussurrada ao pé do ouvido? Chato é quando você não escuta, e a coisa perde a espontaneidade ao pedir que a pessoa repita. Quem convive comigo, acaba tendo que se habituar aos constantes "quê?".

Se falar ao telefone é um drama para muitos, não poder fazer leitura labial só o aumenta. Na verdade, irritante é ser chamado de senhora por atendentes de telemarketing por conta da voz anasalada, já que o processo fala/escuta estão intrinsecamente associados. E isso não separa do contexto social e cultural que estamos inseridos! Dá vontade de gritar com a pessoa do outro lado da linha dizendo que com todo respeito, senhora é a mãe dele! Do mesmo modo, certas brincadeiras que acontecem desde a infância entristecem. Se alguém não ouve alguma coisa, “empresta teus aparelhos para o fulano”. Uma fala situada entre a linha tênue da brincadeira que proporciona leveza ao fato de não ouvir “como todo mundo”, ao mesmo tempo em que se reforça esse lugar...

Se relato esses pequenos eventos cotidianos, não é para me queixar de minha condição, mas sim de como ela marca e produz um modo de viver que não é só meu, mas de todas as pessoas que possuem uma perda auditiva e precisam fazer uso de próteses. E na hora de procurar emprego, a dúvida sempre emerge: sou deficiente ou não? Com a prótese, consigo levar uma vida “normal”. Sem a prótese, as palavras começam a ser engolidas, “falando para dentro”, a vontade de interagir com as pessoas diminui... Embora haja uma política pública de inclusão que força a efetivação da inclusão, como ela é realizada no cotidiano escapa aos diferentes governos. Se o Estado e a sociedade civil precisaram pensar na inclusão, agora eles precisam pensar as diferenças. Fugindo da busca de um normal ideal, no encontro com a realidade, vemos as diferenças. Seja nos graus de perda auditiva que variam de 0 a 100%, seja nos modos de como cada um de nós escuta o que chega aos nossos ouvidos. Entre 0 e 100%, existem infinitas possibilidades numéricas, assim como são infinitas as possibilidades de existência.

Todos somos deficientes em alguma medida. Às vezes, ela está inscrita em nosso corpo. Se não possuímos alguma deficiência, isso é motivo para se (pré)ocupar. Como diria a sabedoria popular: “O pior cego é aquele que não quer ver”. Se por vezes olha-se para alguém com uma perda auditiva como um surdo, é preciso compreender que existem diferentes graus de perda auditiva desde a surdez até uma perda auditiva leve. E isso virará uma norma em nossa sociedade contemporânea, que tem abusado dos fones de ouvido, ocasionando perdas auditivas nas mais diferentes faixas etárias.

Se temos avançado nas políticas de inclusão às diferentes necessidades especiais, precisamos pensar nas diferenças existentes nas necessidades especiais que cada um de nós precisa. É recorrente a pergunta se sei falar libras por possuir uma perda auditiva, minha resposta é sempre não, porque sou ouvinte. Porém, talvez eu precise aprender a me comunicar nessa linguagem, como tenho aprendido a língua inglesa, pois posso perder a oportunidade de conhecer pessoas bem legais e interessantes que somente se expressam por essa via.

Possuir uma perda auditiva e fazer uso de prótese não é ruim, é diferente. Uma vez após comer um biscoito da sorte chinês, recebi a seguinte frase: “Os olhos acreditam em si próprios, os ouvidos acreditam em outros”. Ser humano é estar em relação ao outro, e quando esse outro nos coloca em alguns lugares podemos ter os limites de nossa existência bem restritos. Se a tecnologia tem avançado e aprimorado cada vez mais os aparelhos auditivos, o acesso a essa tecnologia também deve ser efetivar desde as diferentes políticas públicas. Do mesmo modo, em nosso cotidiano ao encontrarmos alguém com uma necessidade especial, seja ela auditiva, visual, física, é preciso perguntar à pessoa como ela quer ser tratada. Afinal, é somente no encontro com o deficiente que podemos transpor nossas deficiências, pensando e sendo diferente juntamente com ele.

Para mais textos sobre a temática da Deficiência Auditiva, a Paula Pfeifer tem um blog excelente. É o Crônicas da Surdez, confiram clicando aqui.